Texto: Elisângela Orlando | Fotos: Pedro Vilela
O amigo ainda não havia acabado de cortar o quiabo, mas ele já estava lá, em pé, parado ao lado do fogão e da grande panela que seria usada na preparação do cardápio do dia: arroz, feijão, carne e quiabo. O apelido, Cabo, ganhou na juventude, quando trabalhava em uma unidade da Aeronáutica onde ajudava a capinar o pátio. Aprendeu a cozinhar quando criança, observando a mãe. Apesar dos dotes culinários, faz de tudo um pouco na ampla casa em que vive com outros oito amigos – na verdade, companheiros de uma longa jornada. Adora passear de vez em quando e revela que, durante uma pescaria, começou a conversar com Regina, agora sua quase namorada.
Quem não conhece o cozinheiro de voz suave e semblante sério não imagina que, durante quatro décadas, ele viveu trancafiado em um manicômio. Chegou ao antigo Hospital Colônia de Barbacena no auge da juventude, com apenas 22 anos. Não sabe por que foi parar lá.
Durante esse tempo, sofreu todo tipo de maus tratos e humilhações. Aos 66 anos, Antônio Gomes da Silva é um sobrevivente de um período sombrio da história do modelo brasileiro de assistência à saúde mental.
O pesadelo acabou, mas as lembranças estão cravadas na mente, no peito, na pele. Em várias ocasiões acordou pela manhã e viu o companheiro que dormia ao lado, no capim, morto. Não sabe precisar quantas vezes tomou eletrochoque ou teve que segurar um amigo para que fosse submetido ao mesmo suplício sem anestesia ou qualquer tipo de preparação. Também já foi obrigado a cavar a sepultura de quem não conseguiu resistir a tanta desumanidade. Chegou a levar corpos empilhados em um carrinho de mão para que os esqueletos fossem repassados às faculdades de medicina.
Recordações que parecem ter saído de um filme de terror. Agora, além de um lar, Antônio tem sua própria renda.
Todos os meses recebe 320 reais do Programa de Volta para Casa, recurso dado pelo Ministério da Saúde aos egressos de longas internações psiquiátricas.
A quantia é pequena, porém, somada aos benefícios que os demais colegas da casa recebem, garante uma vida mais feliz e digna a quem já sofreu tanto.
A história de Antônio também poderia ser o retrato da vida de Luiz Pereira de Melo, o amigo que picava o quiabo quando Antônio começou a contar sua história. Assim como o companheiro, Luiz apanhou muito. Não consegue se esquecer do gosto ruim da comida e do sabor amargo do café que serviam na colônia e, por isso, faz questão de ajudar na cozinha hoje. Também adora regar as plantas e dobrar as roupas de todos que moram com ele. “Só sinto falta de fazer mais caridade”, conta.
É lá que também mora João Gonçalves dos Santos, 49 anos, mais conhecido como João Garçom. Basta conversar alguns minutos com ele para saber o porquê do codinome. Fez um curso logo que deixou o hospital e assim realizou o sonho de trabalhar como garçom. Protagonizou uma bonita história de amor ao lado de Ana Gaspar, outra moradora da colônia. Os dois chegaram a se casar, mas ela morreu um ano depois, vítima de câncer. A liberdade para ir e vir é o que ele mais gosta na nova vida. “Antes, eu ficava preso.”
Antônio, Luiz e João são três dos 167 moradores das 26 residências terapêuticas que existem em Barbacena. Nelas moram egressos de hospitais psiquiátricos da região, a maioria do antigo hospício, hoje Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). As moradias são mantidas pela prefeitura, com a ajuda do governo federal e da ONG Instituto Bom Pastor. Barbacena é um exemplo de como é possível aliar todas as esferas de governo e também a iniciativa privada para que portadores de sofrimento mental tenham acesso a um atendimento de qualidade e a oportunidade de viver bem, livre de celas e correntes.
Na terceira e última reportagem da série sobre os 30 anos da reforma psiquiátrica no país, conto histórias que demonstram que a doença mental não pode ser tratada como sinônimo de reclusão por tempo indeterminado e de exclusão social. Falo sobre as mudanças que a antiga colônia sofreu ao longo dos anos e como vivem os 219 pacientes que ainda moram nas dependências do hospital. Compartilho ainda um pouco da emoção e do horror que senti ao entrar no Museu da Loucura e me deparar com imagens e objetos do velho manicômio. E, em meio a tanto sofrimento, também há espaço para o caso de amor entre Adelino e Nilta, que viveram reclusos no sanatório e, agora, casados, têm um lar de verdade.
Ao chegar em Barbacena, fiquei impressionada quando me deparei com o CHPB. A fachada do prédio ainda é a mesma do fim da década de 1970, quando o psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou o hospital e o comparou a um campo de concentração nazista. Quem vai ao local pela primeira vez certamente fica admirado com a beleza arquitetônica do complexo. Foi o que aconteceu comigo e custei a crer que, atrás daquelas paredes, morreram mais de 60 mil pessoas, muitas vítimas de descaso.
Até hoje há portadores de transtorno mental morando no hospital. O cenário, entretanto, é bem diferente do retratado pelo cineasta Helvécio Ratton no documentário Em Nome da Razão, de 1979. O capim deu lugar a camas, o ambiente é arejado e claro e não há mais sinais de celas e correntes. Pouco mais de 100 pessoas, consideradas doentes crônicos, ainda vivem em pavilhões. Em um deles, conheci Eunice Alves dos Santos, 51 anos. Falante e bem-humorada, disse que nasceu em Belo Horizonte, estudou até a quinta série e que morava no bairro Santo André. Foi internada no Instituto Raul Soares aos 20 anos e, depois, transferida para Barbacena. Só teve contato com a família uma vez. “Já levei muito choque. Hoje, tudo é melhor.
Outros 98 pacientes estão em módulos residenciais, espécie de enfermarias semelhantes a casas que abrigam pacientes de longa internação e que não têm condições de bancar o próprio sustento, informa a diretora assistencial da instituição, Mônica Mattos Chartuni. Gente como Adolfo Damião, 75 anos, que foi internado no hospital psiquiátrico em 1955. De filiação ignorada, ninguém sabe dizer ao certo como ele foi parar em Barbacena. Vaidoso, Adolfo adora se enfeitar e, nas festas, é sempre um dos mais animados. Nunca abre mão da espreguiçadeira em que assiste à TV, à tarde, e costuma brigar quando alguém ocupa seu lugar.
Entre as mulheres que vivem nos módulos residenciais está Maria da Conceição de Brito. Aos 83 anos, diz que ainda espera a mãe ou o namorado virem buscá-la no hospital, onde mora desde os 20 anos. Lá também vive Maria Aparecida Reis, 75. Está na instituição desde 1972. É difícil entender o que ela diz, mas quem a ouve tocar gaita, acaba se esquecendo desse detalhe e se deixa levar pelo som do instrumento.
Apesar de ser gerido pelo estado, o CHPB, que é mantido pela Fhemig, cedeu parte de seu terreno para o município. É lá que funciona o Departamento Municipal de Saúde Pública (Demasp), o que permite um intercâmbio mais intenso entre as duas esferas de governo, beneficiando quem necessita do serviço. Exemplo disso é que muitos pacientes que hoje estão em módulos residenciais do CHPB aguardam vagas em residências terapêuticas mantidas pela prefeitura.
No alto do chamado Morro da Caveira existia, no fim do século 18, a sede da Fazenda da Caveira de Baixo, propriedade do português Joaquim Silvério dos Reis, delator da Inconfidência, que vivia na região de Borda do Campo, hoje Barbacena. Após passar por vários donos, essas terras e o antigo casarão foram adquiridos pelo comendador Francisco Ferreira e os médicos Gonçalves Ramos e Rodrigues Caldas que, em 1889, inauguraram o Sanatório de Barbacena
Com a falência do sanatório, o terreno foi comprado pelo governo mineiro, que pretendia implantar na cidade uma escola de artes e ofícios. Em 1903, porém, por influência do médico Joaquim Dutra, o local passou a abrigar a Assistência aos Alienados. Seria centralizado em Barbacena, a partir de então, todo o atendimento psiquiátrico de Minas Gerais Em 1920, para controlar o grande número de internações em Barbacena foi criado o Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte
A falência terapêutica e estrutural da instituição é fartamente denunciada pela imprensa e especialistas em 1979. Após visita ao hospital, o psiquiatra italiano Franco Basaglia o compara a um campo de concentração nazista
Em 1980, o hospital passa a ser chamado de Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB)
Nove anos mais tarde, o projeto de lei federal nº 3.657 é apresentado e propõe o fim gradual dos manicômios e adoção de outras formas de tratamento
Em 1991, as áreas administrativas e assistenciais do CHPB começam a ser reestruturadas
Dois anos depois, é desativada a última cela no pavilhão Antônio Carlos
Em 1995, o projeto de lei estadual nº 11.802 propõe a reintegração social do portador de doenças mentais e determina a progressiva extinção dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros métodos de atendimento
É promulgada, em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/01), prevendo a substituição gradual dos leitos psiquiátricos por núcleos de atendimentos, redes de apoio e hospitais-dia
“Durante décadas o Hospital Colônia de Barbacena vendia às escolas de medicina cadáveres de pacientes que morriam às centenas sem que ninguém reclamasse por seus corpos. Para o fornecimento de ossos, corpos eram cozidos em tambores de gasolina, diante dos outros pacientes.”
“O doente mental é antes de tudo um doente social. O impulso da sociedade de tê-lo afastado justifica o hospício, e este é o destino de muitos pacientes até a morte. As internações são justificadas de todas as formas: psicóticos, deficientes físicos, alcoólatras, epiléticos e rejeitados em geral. A maioria das famílias abandona seus doentes, que se tornam crônicos.”
Fonte: MUSEU DA LOUCURA
Laborterapia (trabalho): o Hospital Colônia de Barbacena possuía imensos campos de plantio e ainda carpintarias, olarias e outras oficinas muito ativas. A mão de obra dos pacientes muitas vezes, além de sustentar o hospital, era utilizada pela municipalidade e até particulares na construção de estradas, pontes e calçamentos. Segundo o regulamento da colônia, somente os indigentes eram obrigados por lei a trabalhar
Contenção: celas, camisas de força e banhos frios e quentes
Eletroconvulsoterapia: desenvolvido na década de 30 por psiquiatras italianos, o método de provocar convulsões através de choques elétricos passou a ser usado largamente. Somente nos anos 1960, o eletrochoque começou a ser utilizado após anestesia do paciente. Os efeitos colaterais: luxações, fraturas e, eventualmente, morte por parada cardíaca e respiratória. As descargas elétricas variam de 120 a 130 volts
Psicofarmacologia: drogas
Psicocirurgia: lobotomia
O espaço também abriga o Hospital Geral da cidade, o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), o Museu da Loucura e o Centro Social. Neste último, são realizadas diversas oficinas terapêuticas com pacientes do CHPB ou usuários dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). As oficinas são ministradas por uma equipe formada por terapeutas ocupacionais, psicólogos e assistentes sociais, que desenvolvem atividades que visam à reintegração social, familiar e profissional dos doentes, entre outros objetivos.
Visitei o Centro Social numa quinta-feira, quando estava sendo realizado o baile de Carnaval. Um dos mais animados era Vicente Nicácio, 52 anos, que mais parecia uma criança ao correr de um lado para o outro. As auxiliares de enfermagem confirmam que “ele é como um menino levado que cresceu muito”. Começou a frequentar o Centro Social porque tomou gosto pela pintura. Já foi agressivo em outros tempos, mas hoje o sorriso é uma de suas características mais marcantes.
Muitos pacientes que vivenciaram os horrores do velho hospício, porém, tiveram a oportunidade de sair e dar outro rumo a sua história. Foi o que aconteceu com Adelino Ferreira Rodrigues, 62, e Nilta Pires Chaves, 50. Pacientes de longa permanência da antiga colônia, os dois se conheceram no hospital e se apaixonaram. “Ela lavava minhas roupas”, lembra Adelino. Com a reforma psiquiátrica, foram transferidos para residências terapêuticas em 2004. Fora do hospital, deram continuidade ao romance e decidiram se casar. Hoje, vivem sozinhos na casa que eles mesmos decoraram. A rotina é a de qualquer casal. São responsáveis pelo seu próprio sustento e contrataram uma faxineira para manter a casa sempre limpa e arrumada. Não se desgrudam. “A vida de casada é muito melhor”, afirma Nilta entre um sorriso e outro.
Sorrisos, entretanto, são incapazes de apagar as cenas bárbaras que chocaram a sociedade no final dos anos 70. Imagens expostas no Museu da Loucura e que estão lá para que atrocidades semelhantes jamais voltem a acontecer. Fiquei estarrecida ao ver e tocar equipamentos que eram utilizados no tratamento dos pacientes do hospital há algumas décadas. Verdadeiras ferramentas de tortura.
Confesso que não contive as lágrimas ao entrar na sala em que ficam instrumentos cirúrgicos que eram utilizados na lobotomia. Após a operação, considerada o último recurso para conter os pacientes mais agressivos, o doente ficava incapaz de expressar qualquer emoção – deixava de ser louco para tornar-se um vegetal.
Ao terminar a série de reportagens sobre a reforma, percebi que os hospitais de saúde mental mudaram muito, os tratamentos estão mais avançados e os serviços substitutivos têm contribuído de forma significativa para que os portadores de sofrimento mental construam novos laços sociais e tenham oportunidades reais de emprego e renda. O que ainda precisa ser reformada é a visão que a sociedade tem do doente psíquico. O fim do preconceito é uma tarefa que, certamente, vai demorar muito mais tempo.
Fonte: reprodução do sítio da Revista Viver Brasil
Reforma Psiquiátrica: Onde (e como) tratar?